Os dragões também dizem sim ou O hibrido escafandro
A água ficou vermelha. Um oceano inteiro nos meus olhos.
Virei escafandro. Ao nadar por aquelas águas, tudo parecia genuinamente meu. É
que, no azul, não poderia mergulhar. Não sabia aonde ir, como chegar, como
voltar. Seriam seus os sinais, se era azul, também, o seu sorriso, da cor do seu
adeus. Tudo permanecia azul, porque você era azul, sereia.
Num mar vermelho, turvo, esquecido, estava tudo bem. Desci
até sentir a pressão entrar no meu peito. Ou sair. Fechei os olhos. Era minha
única opção: achar o rosto por trás da voz. É que estava condicionada a ver seu
rosto em qualquer parte do mar. Eles só viam pedaços do teu corpo, lembracas do
teu mapa, algas do teu girassol, conchas em teus botões, azul da cor da tua
janela. De olhos fechados, não via tudo você. Poderia reconhecer teu canto, o
verdadeiro. Fechados. Já fazia um tempo em que não nadava com ancora, corda
presa nos pés. Machucava tuas barbatanas. Cada vez mais, você virava do mar.
Quase não saia mais pra superfície, o azul também era tua casa.
Eu tinha ar para sete minutos. Agora seis e cinqüenta e três.
Dancava no profundo vermelho. No finito... Tuas mãos em minhas mãos. Sentia teu
ar no vidro do escafandro. Meus pés de pato, tua calda. Um satélite energizando
a água, de vermelho para o negro. Sumimos. Na dança, nadávamos. Na velocidade,
imprecisa, de nós marítimos humanos. O satélite no vidro entre o teu rosto e o
meu ar de quatro minutos e vinte. Não poderia escapar. Prendi a respiração,
ainda você no vidro. Segura meu ar, sereia. Me segura.
Saí do vidro. Já não era mais escafandro. Era híbrido,
terminantemente escasso, participante do teu mundo de guelras. Um vôo em emergência,
num mar completamente vermelho. Abri os olhos. Abri os olhos no azul dos teus.
Desencadeava algo que chamavam de Sol do Dragão. Era o mar vermelho, pelo fogo
que os dragões marítimos carregavam, e queimava a água inteira. Sem poder
despejar tanto fogo, a pigmentação corroia toda a maré. E nessa maré, era possível
ver todos os, também híbridos, seres ciano-magenta que permaneciam camuflados, meio
a todo o azul do oceano. A densidade no Sol do Dragão era mais intensa, então estávamos
todos em desaceleração constante. Estávamos presos no tempo dos dragões. O meu
ar de quatro minutos e vinte reduziria, ou acabaria, ou estenderia por horas.
Estava a todo vapor, a mercê do Sol hibrido desacelerado em construção. Você continuava
azul. Sua dança em movimentos parcialmente espaciais. Seu sorriso destruía,
calmamente, a minha pressão submarina. Meu coração, agora hibrido, parava e soluçava
em voltas quando sua dança chegou a mim. Ela tocou, milimetricamente, todos os
fios da minha cor inexata oceânica. Sua calda esparramada na agora nossa dança.
“Não dói”.
Estávamos à queima roupa. Dois passos em velocidade lunar.
Os cavalos percorriam nossa atmosfera em passos acelerados, cabeça pra baixo, círculos
violentos de ar pelos poros azulados. Firmamos as mãos, adágio. Collé. O
submundo marítimo sucumbia pelo mar vermelho. Abissais tentavam chegar a terra
para descolorir a indevida freqüência que os dragões pintaram. Híbridos corpos em devant. Costas arqueadas. Nenhum
marujo havia beijado a boca de uma sereia, antes. Era letal para qualquer
sentido humano. Mas no Sol, com o mar vermelho, também era um ser do mar. Não haviam
lábios a serem tocados. Só aquela sensação de perder-se. Eu sabia que se
ficasse, ela estaria sempre ali. Peixes pescadores se misturavam a esponjas,
sua luz já não iluminava. Espectros e corais continuavam em ordem, em descanso
e luto absoluto. Sissone. Salto em duas pernas, caindo em uma só. Estando em
uma só. Era a ultima coisa que queria fazer. Passaria o resto de meu tempo
tentando lembrar apenas daquela sensação de ser Azul, de ser organismo parte do
teu mundo.
Uma correnteza enviesada para cima. O mar escurecia. A noite
caia ali, também. Caia e levava com ela a cor vermelha dos dragões. Ouviam-se
sussurros quentes, eles iam embora, deixando todo o azul do mar no seu devido
estado de outrora. A correnteza me levava para a beira daquele oceano. Ah, você.
Voce que é daqui. Eu que não fico. Que também não vou... Não vou porque resisto
exatamente assim. Resisto na cor mais bonita. Na tua cor.
Vinte e cinco segundos de ar. De cabeça pra baixo, retornava
a superfície. Minha roupa de escafandro pairava há alguns metros dali. Ainda
era dia, pelo céu. Pelo mar, era noite. Nadei até o navio. No vidro da cabeça submarina,
marcava os mesmos quatro minutos e vinte. Eu estava suspensa, no tempo dos dragões.
Permanecia em você, à queima roupa. “Não
dói”
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